Como a Academia Brasileira de Letras preencheu as lacunas e contradições da lei ortográfica - Luiz Costa Pereira Junior
A Academia Brasileira de Letras concluiu em dezembro e lança em março a versão mais recente do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, pela Global Editora, à luz das regras ortográficas que entraram em vigor este ano. Nele estão as palavras tal qual o acordo manda grafar. Mas também as grafias sobre as quais a nova lei se contradiz ou se omite. Não foram poucos os casos do gênero, garante o gramático Evanildo Bechara, que liderou a equipe da ABL na empreitada. - Buscamos decifrar o espírito do acordo para preencher as lacunas, fundando-nos em bom senso e na tradição lexicográfica corrente - diz Bechara.
Bechara explicou a conduta da ABL num debate em novembro, no Anglo Vestibulares, em que também participaram linguistas como José Luiz Fiorin, Francisco Platão Savioli e Maria Helena de Moura Neves.
- Ficamos sem saber se o acordo, na tentativa de simplificação, esqueceu de apresentar todos os casos ou adotou um critério de dizer que, nos casos omissos, prevalece a grafia antiga. Pois o acordo teve uso curioso do "etc.": pôs "etc." até nas exceções. Decidimos, então, que a exceção fica restrita aos casos prescritos na lei como exceção - diz Bechara.
Significa que a ABL ignorou qualquer exceção que não já citada em lei, só as que estão na lista de exceções antes de surgir o "etc."
- O espírito do acordo sugere a queda do uso do hífen. Não fazia sentido "fim de semana" às vezes levar hífen e "fim de século" nunca levar. O acordo resolve isso. Ficam os dois casos sem sinal. Mas nem tudo foi tão fácil interpretar - diz Bechara.
HifensO acordo manda ignorar o hífen em expressões compostas por mais de uma palavra, quando não há noção de composição. Mas não há pesquisas precisas sobre perda da noção de composição na maioria dos casos, pondera Bechara.
A lei ignora os elementos repetidos que formam compostos. A ABL, então, estendeu o hífen às onomatopeias e palavras expressivas: "blá-blá-blá", "reco-reco", "zum-zum", "zigue-zague", "pingue-pongue", "xique-xique", "lenga-lenga" e derivados como "zum-zunar" e "lenga-lengar". Casos mais complexos, como "tintin por tintin", são agora grafados com hífen (tintim-por-tintim).
Simplificaram, por um lado, a ortografia em vigor nas navegações, complicando de outroComo acomodar, então, a reduplicação da linguagem infantil em palavras criadas por adultos (titio, papai, mamãe)? A se aplicar a regra, haveria hifens indesejáveis nesses casos. Compreendeu-se, então, diz Bechara, que nesses casos a sílaba não funciona sozinha, não tem individualidade discursiva. Portanto, a composição não terá hífen.
E "bombom"? Não é onomatopeia, mas termo de origem francesa. Escreve-se junto, sem hífen, definiu a ABL. Assim como "bumbum". Mas se "bum" vier só e em vez do segundo "bum" houver outro elemento: com hífen, avisa Bechara.
O acordo omite a existência ou não de hífen nos casos em que "não" e "quase" estão ao lado de outras palavras. A ABL não manteve o hífen. Assim, grafam-se "pacto de não agressão" e "cometeu um quase delito", por exemplo. Sem hífen.
A lei define que terão hífen as palavras oriundas ou derivadas da botânica ou da zoologia. Daí "água-de-coco"; "azeite-de-dendê"; "bálsamo-do-canadá". Mas não "sumo de maracujá"; "suco de limão", pois a preposição não estabelece sentido único. Nem tampouco expressões usadas fora do contexto botânico. Por isso, interpretou a ABL:Bico-de-papagaio = com hífen, pois é planta.Bico de papagaio = sem hífen, pois é problema de coluna.
Completando o acordo
A Academia Brasileira de Letras concluiu em dezembro e lança em março a versão mais recente do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, pela Global Editora, à luz das regras ortográficas que entraram em vigor este ano. Nele estão as palavras tal qual o acordo manda grafar. Mas também as grafias sobre as quais a nova lei se contradiz ou se omite. Não foram poucos os casos do gênero, garante o gramático Evanildo Bechara, que liderou a equipe da ABL na empreitada. - Buscamos decifrar o espírito do acordo para preencher as lacunas, fundando-nos em bom senso e na tradição lexicográfica corrente - diz Bechara.
Bechara explicou a conduta da ABL num debate em novembro, no Anglo Vestibulares, em que também participaram linguistas como José Luiz Fiorin, Francisco Platão Savioli e Maria Helena de Moura Neves.
- Ficamos sem saber se o acordo, na tentativa de simplificação, esqueceu de apresentar todos os casos ou adotou um critério de dizer que, nos casos omissos, prevalece a grafia antiga. Pois o acordo teve uso curioso do "etc.": pôs "etc." até nas exceções. Decidimos, então, que a exceção fica restrita aos casos prescritos na lei como exceção - diz Bechara.
Significa que a ABL ignorou qualquer exceção que não já citada em lei, só as que estão na lista de exceções antes de surgir o "etc."
- O espírito do acordo sugere a queda do uso do hífen. Não fazia sentido "fim de semana" às vezes levar hífen e "fim de século" nunca levar. O acordo resolve isso. Ficam os dois casos sem sinal. Mas nem tudo foi tão fácil interpretar - diz Bechara.
HifensO acordo manda ignorar o hífen em expressões compostas por mais de uma palavra, quando não há noção de composição. Mas não há pesquisas precisas sobre perda da noção de composição na maioria dos casos, pondera Bechara.
A lei ignora os elementos repetidos que formam compostos. A ABL, então, estendeu o hífen às onomatopeias e palavras expressivas: "blá-blá-blá", "reco-reco", "zum-zum", "zigue-zague", "pingue-pongue", "xique-xique", "lenga-lenga" e derivados como "zum-zunar" e "lenga-lengar". Casos mais complexos, como "tintin por tintin", são agora grafados com hífen (tintim-por-tintim).
Simplificaram, por um lado, a ortografia em vigor nas navegações, complicando de outroComo acomodar, então, a reduplicação da linguagem infantil em palavras criadas por adultos (titio, papai, mamãe)? A se aplicar a regra, haveria hifens indesejáveis nesses casos. Compreendeu-se, então, diz Bechara, que nesses casos a sílaba não funciona sozinha, não tem individualidade discursiva. Portanto, a composição não terá hífen.
E "bombom"? Não é onomatopeia, mas termo de origem francesa. Escreve-se junto, sem hífen, definiu a ABL. Assim como "bumbum". Mas se "bum" vier só e em vez do segundo "bum" houver outro elemento: com hífen, avisa Bechara.
O acordo omite a existência ou não de hífen nos casos em que "não" e "quase" estão ao lado de outras palavras. A ABL não manteve o hífen. Assim, grafam-se "pacto de não agressão" e "cometeu um quase delito", por exemplo. Sem hífen.
A lei define que terão hífen as palavras oriundas ou derivadas da botânica ou da zoologia. Daí "água-de-coco"; "azeite-de-dendê"; "bálsamo-do-canadá". Mas não "sumo de maracujá"; "suco de limão", pois a preposição não estabelece sentido único. Nem tampouco expressões usadas fora do contexto botânico. Por isso, interpretou a ABL:Bico-de-papagaio = com hífen, pois é planta.Bico de papagaio = sem hífen, pois é problema de coluna.
Contexto
A nova lei ortográfica não avança em problemas contextuais. Como locuções não levam mais hífen (pé de moleque, calcanhar de aquiles), assim como "pé de galinha" (ruga) e "pé de galinha" (pata de galináceo). Só o contexto dará a diferença.Porque caiu o acento diferencial, só o contexto da frase determinará se "Ronaldo para o Corinthians" é com "para" (forma verbal) ou "para" (preposição): Ronaldo conseguiu parar o time ou vai trabalhar nele? Assim "trabalhou à toa" (advérbio) x "estou à toa" (adjetivo), todos sem hífen. E "dia a dia" sem hífen, não importa o contexto. Antes, no sentido de "cotidiano", tinha hífen.
O acordo define que paroxítonas com ditongos ei e oi abertos perdem acento (estreia, hemorroida). Mas não se lembrou, diz Bechara, de paroxítonas presas a regras gerais de acentuação, com ei e oi, que precisam de acento se terminadas em r: "destróier", "Méier", "gêiser". A grafia delas fica como antigamente.
O acordo define que paroxítonas com ditongos ei e oi abertos perdem acento (estreia, hemorroida). Mas não se lembrou, diz Bechara, de paroxítonas presas a regras gerais de acentuação, com ei e oi, que precisam de acento se terminadas em r: "destróier", "Méier", "gêiser". A grafia delas fica como antigamente.
Omissões
As sugestões da ABL às lacunas do acordo ortográfico, que assumem valor de lei no Brasil, suscitam dúvidas. De um lado, acabam com ambiguidades e erros das edições de dicionários impressas no ano passado. Quem consultar versões "atualizadas conforme o acordo", de editoras ávidas em garantir sua cota de venda ao governo, encontrará grafias que nem sempre correspondem às de concorrentes, tampouco às da ABL.
Mas não está dado que Portugal acate as sugestões brasileiras, podendo lançar grafias diversas das propostas pelo Brasil, se e quando tratarem do problema (os europeus resistem ao acordo e a preencher suas lacunas). A ABL cria o fato político de precipitar o debate que os portugueses tendem a levar com a barriga.
O mais contundente dado político da medida da ABL, no entanto, é o de demarcar posição e, com isso, normatizar o que talvez nem precisasse. Um equívoco no uso do hífen não é o tipo de tropeço que atrapalha a compreensão ou afete a imagem da pessoa. Ninguém será tomado por ignorante nem deixará de ser entendido ao escrever "água-de-coco" com ou sem hífen. Antes de dar vazão à ânsia normativista, talvez fosse o caso de fazer como idiomas em que o hífen é, quando não ignorado, deixado ao gosto do freguês. Mas o Brasil escolheu outro caminho. Quem quiser que o siga.
Mas não está dado que Portugal acate as sugestões brasileiras, podendo lançar grafias diversas das propostas pelo Brasil, se e quando tratarem do problema (os europeus resistem ao acordo e a preencher suas lacunas). A ABL cria o fato político de precipitar o debate que os portugueses tendem a levar com a barriga.
O mais contundente dado político da medida da ABL, no entanto, é o de demarcar posição e, com isso, normatizar o que talvez nem precisasse. Um equívoco no uso do hífen não é o tipo de tropeço que atrapalha a compreensão ou afete a imagem da pessoa. Ninguém será tomado por ignorante nem deixará de ser entendido ao escrever "água-de-coco" com ou sem hífen. Antes de dar vazão à ânsia normativista, talvez fosse o caso de fazer como idiomas em que o hífen é, quando não ignorado, deixado ao gosto do freguês. Mas o Brasil escolheu outro caminho. Quem quiser que o siga.
Completando o acordo
Decisões da ABL para as omissões da nova lei ortográfica:
Sem hífen
"Dia a dia", em qualquer contexto
"Fim de semana", em qualquer contexto (ao modo de "fim de século")
"À toa", seja advérbio ou adjetivo
"Pé de galinha", seja ruga ou pata (ao modo de "pé de moleque", "calcanhar de aquiles")
"Bico de papagaio", o problema de coluna e nariz adunco. "Não" e "quase" complementando outras palavras, como em "pacto de não agressão" e "cometeu um quase delito"
"Fim de semana", em qualquer contexto (ao modo de "fim de século")
"À toa", seja advérbio ou adjetivo
"Pé de galinha", seja ruga ou pata (ao modo de "pé de moleque", "calcanhar de aquiles")
"Bico de papagaio", o problema de coluna e nariz adunco. "Não" e "quase" complementando outras palavras, como em "pacto de não agressão" e "cometeu um quase delito"
Com hífen
"Bico-de-papagaio", a planta (ao modo de "água-de-coco" e "azeite-de-dendê")
Onomatopeias e palavras expressivas com elementos repetidos: "blá-blá-blá", "reco-reco", "zum-zum", "zigue-zague", "pingue-pongue", "xique-xique", "lenga-lenga", "tintim-por-tintim"
Onomatopeias e palavras expressivas com elementos repetidos: "blá-blá-blá", "reco-reco", "zum-zum", "zigue-zague", "pingue-pongue", "xique-xique", "lenga-lenga", "tintim-por-tintim"
* Fonte: Revista Língua Portuguesa - 03/2009 - Edição 41
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