terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

180 MILHÕES DE LINGUISTAS

Como no futebol, em que todo torcedor é um “técnico”, já há uma tradição brasileira de palpitar sobre questões de linguagem. Aldo Bizzocchi

Dizem que foi o saudoso narrador esportivo Geraldo José de Almeida quem disse, lá pelos idos de 1969, que o Brasil tinha 90 milhões de técnicos de futebol. Na verdade, a constatação de que todo brasileiro – ou quase todo – gosta de dar palpites sobre a seleção deve ser bem anterior ao Geraldo, mas parece que foi ele quem popularizou a expressão, talvez até parodiando a famosa marchinha de Miguel Gustavo, Pra Frente, Brasil, que exortava em tom ufanista (eram os tempos da ditadura militar): “90 milhões em ação, pra frente, Brasil do meu coração”. Desde então, essa frase vem tentando acompanhar nossa explosão demográfica e, atualmente, os cronistas esportivos não se cansam de repetir o clichê de que o Brasil tem 180 milhões de técnicos. Afinal, qualquer torcedor sabe escalar a seleção melhor do que o Dunga. Qualquer tropeço da esquadra nacional é motivo de críticas acerbas e inflamadas em todas as esquinas e mesas de bar deste país. E todos – menos o técnico – sabem diagnosticar onde está o erro.
Pois cheguei à conclusão de que o Brasil também tem 180 milhões de lingüistas. Isso mesmo! Somos 180 milhões de cidadãos que adoram palpitar sobre as línguas em geral e sobre a língua portuguesa em particular. E fazemos isso com a sem-cerimônia e desenvoltura de grandes experts (ou espertos) no assunto.
Quando se trata da língua, não é raro ouvirmos os maiores disparates, eivados de preconceito e miopia intelectual, proferidos amiúde em tom solene e professoral por pessoas que às vezes mal têm o ensino fundamental completo. Frases chauvinistas como “o português é a mais bela e perfeita língua do mundo”, “o francês é o idioma da lógica e do equilíbrio” ou “só é possível filosofar em alemão” já se tornaram lugar-comum em discussões do gênero. Mas críticas impertinentes e infundadas como “o inglês é uma língua absurda, que põe o adjetivo antes do substantivo” ou “só uns estúpidos como os alemães podem construir palavras tão quilométricas” também pululam nas rodas de bate-papo e revivem certos mitos que remontam ao século 19, quando romanticamente se acreditava que as línguas eram organismos vivos, inteligentes e, por isso, dotados de “personalidade”. Daí que o italiano é uma língua sensual, o francês é cartesiano, o alemão é militarista, o inglês é cerimonioso, o tupi é indolente…
Quando o assunto é etimologia, então, nem se fala: todo mundo sabe exatamente de onde vieram as palavras. Corre uma lenda, por exemplo, de que coitado deriva de coito, ato sexual, o que dá um ar malicioso – e por isso mesmo atraente – a esse epíteto. Na verdade, coitado vem do português medieval coita, “sofrimento”, por sua vez originário do latim vulgar cocta. Trata-se de um caso, como muitos, de etimologia popular, em que o aspecto sugestivo da palavra parece inspirar as pessoas a descobrirem certos estratos geológicos de sua história que jamais existiram. E, por vezes, o achismo lingüístico é tão mais sedutor que a verdade científica que, diante de uma explicação convincente mas fantasiosa, a dura realidade fica meio sem graça. Falsas etimologias existem, que eu saiba, desde que o homem fala. Platão, no Crátilo, afirmou que os heróis têm esse nome por serem fruto do amor (Eros) entre um deus e um ser mortal. Santo Isidoro de Sevilha, o “patrono da etimologia”, sustentava, dentre outras estultices, que femina (“mulher” em latim) proviria de fide minus, “menos fé”, e que mulier (também “mulher” em latim) viria de molior, “a mais mole”. Mas, se naquela época tais absurdos eram toleráveis, hoje, com os enormes avanços da pesquisa em lingüística, é deplorável que tais mitos ainda façam adeptos. O pior de tudo é que cidadãos leigos não se intimidam em debater sobre questões de língua com especialistas. Embora ninguém que não seja médico ou advogado se atreva a discutir medicina com um médico ou leis com um jurista, qualquer zé-dos-anzóis se sente à vontade para polemizar com um lingüista sobre a origem das línguas, o melhor sistema ortográfico, a superioridade de um idioma sobre outro… Alguns chegam a arvorar-se em legisladores da língua, sem ter mandato para tal (será que alguém tem esse mandato?). É que existe a crença mais ou menos generalizada de que medicina e direito são matérias de alta especialidade, ao passo que a língua é assunto de domínio público. Afinal, nem todos clinicam ou advogam, mas todos falam. E, portanto, qualquer um sabe “ensinar o padre-nosso ao vigário”. Já ouvi mais de uma vez a afirmação de que o português se originou do grego – ou, pior ainda, do celta ou do fenício –, que por sua vez descende do hindu (parece que hinduísmo agora é língua!). Trata-se de uma tremenda mixórdia de informações desencontradas, entreouvidas aqui e ali, colhidas às vezes de fonte não confiável, ou distorcidas pelo “ruído na comunicação”. Além de tudo, a palavra de autores aventureiros, bem como obras de certos gramáticos e filólogos do passado, já superados, ainda ecoam como factóides na cabeça dos leigos, que evidentemente não têm senso crítico para discernir o que é fato e o que é lenda, o que é informação científica atual e o que é mera especulação filosófica ultrapassada.
Some-se a isso o desprestígio em nossa sociedade das profissões ligadas às ciências humanas (erroneamente confundidas com as “humanidades”) e à educação para entendermos porque muitos até duvidam de que a língua possa ser objeto de estudo científico.

Publicado em Língua Portuguesa, ano 2, n.º 22, agosto de 2007

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.